Quarta-feira, 02.02.11

Exorcismos

Hoje estou triste, ainda mais, porque cada dia que passa sinto que devo um epitáfio que não quero escrever e que de certeza não vai ser ainda desta.

De manhã mais angústia, sem saber, incauto, vi um texto escrito pela minha amiga Isabel e tal não podia ser mais descritivo da dor que alguém pode estar a passar. “Tive Um Amigo e Morreu”... dizia/escrevia... e liguei-lhe e fui recebido com sons de lágrimas e mais dor, de um sentido de perda irreparável e insubstituível. “Mas o que é isto?”, dizia a Isabel, “Mas está tudo morrer à nossa volta, o Pedro/Pita, o Carlos Pinto Coelho, agora o José Pedro Barreto...” e passavam-me flashes de apreensão, de poder ser eu o próximo, não pelo medo animal da morte, mas por ir despertar mais lágrimas e tristezas a pessoas que amo, a quem faço falta e me fazem falta, flashes misturados com o pânico de poder ser o último, de ter de passar vivo por mais dor, de sofrer por mais gente que não está, amigos e referências que se apagam num ápice, sem aviso nem despedida e que de repente não sorriem mais, não se ouvem mais, meros rodapés de um edifício que aos poucos se vai transformando em entulho; de ser o último sim, aquele que apaga a luz e fecha a porta do quarto agora vazio

Amigos que desaparecem, que não voltam mais mesmo, que foram candeeiros na nossa estrada, referências, cimento da nossa personalidade, e que quando se vão não se podem substituir, já é tarde para colocar mais postes, a estrada vai ficando mais escura, os cartazes à volta cada vez mais rasgados e quase invisíveis com décadas de graffiti e erosão, no final só uma visão vácua tipo cenário do Mad Max I, II e III.

E não é só o José Pedro Barreto by proxy e o Pita e o Tommy e a São e o Carlos Pinto Coelho e o Gerry Rafferty e o John Barry ontem (quem mais amanhã?), tudo amigos e gente que tinha como garantidos, imortais, exactamente como eu, pensava para mim mesmo ... e então recorro a truques, a exorcismos, tenho telefones, telemóveis, moradas, perfis de Facebook, Olhares, do Pita, quando sei que ele não vai atender, responder, dizer ou publicar uma palavra sensata e carinhosa, porque não quero apagar a luz e fechar a porta do quarto enquanto oiço o tema do “Midnight Cowboy” em loop permanente.

E isto é egoísta e insensato e de todo nada saudável. A vida continua, dizem por aí, há sempre memórias, temos de recordar e guardar o que de melhor os nossos amigos nos deixaram. Mas eu não acredito, é tudo treta, porque nós já temos e somos o que de melhor os nossos amigos nos deixam, somos um pouco deles e eles um pouco de nós e é por isso que quando um Amigo já não está um bom pedaço de mim também não, perco uma mão e tenho de aprender de novo, fazer o nó dos sapatos com os dentes e depois outro Amigo e mais outra mão que se vai, qual sketch do Black Night no filme The Holy Grail. Não é um simples arranhão, é um golpe profundo no coração acima de qualquer reparação cardio-torácica.

Fiquem as memórias pois então, triste consolo, porque não o são.

 

publicado por Paulo Ferreira às 00:45 | ligação do post | comentar | ver comentários (1)
Quarta-feira, 07.03.07

Amigos


A amizade tem de servir para alguma coisa? Qual o significado de se apregoar que fulano é meu amigo? ou sicrano? ou ainda...beltrano? ou .. tem moooontes de amigos?
A amizade tem de servir para alguma coisa! Senão, não serve para nada. Tem de ser reconfortante, mais que segurança, social ou não, que seguro de vida e acidente e incêndio e contra terceiros ou mais e com todos os riscos. Tem de nos dar algo que sózinhos não podemos alcançar, que sózinhos nos deixa incompletos e imperfeitos, como um veleiro sem mastros, uma Mona Lisa a preto e branco ou as Capelas já de si imperfeitas. E é por isso que é egoísta: E exigente. E ciumenta também. E não suporta ausências ou falhas... porque um amigo não falha! e não se deve servir do facto de o ser, amigo, para falhar, porque só ele sabe que a um amigo tudo se perdoa (e isso deixa–nos tão desprotegidos como um recém–nascido... e dependentes).
Tudo menos falhar, falhar a amizade. Porque esta pressupõe um acordo tácito, uma regra não definida, uma cumplicidade escrita no vento. De nada serve ter um amigo que falha, que falta, que não vê, que esquece. Porque um amigo assim é como altar de santo que não faz milagres, às escuras, sem velas. Porque com um santo prometemos algo com vista à obtenção de um resultado, uma apólice em que o prémio é um pouco de estearina ou uns joelhos abrasados. Com um amigo temos o resultado sem esperar algo... e é grátis e é de borla e é bom e faz bem e não cheira a cera, embora por vezes tudo termine com a alma mais arranhada do que mãos que brincam com um gatinho. Mas é assim que sabemos que está lá sempre, tipo Deus, e Deus não tem estátua nem altar nem nada. Porque não precisa. Mas há tão pouca gente assim. E ainda bem. Podemos também reflectir o sentimento e tornarmo–nos infalíveis, omniscientes, omnipotentes e outros adjectivos credíveis, uns Deus de pacote instantâneo onde nem sequer é preciso juntar água. Porque assim tornamo–nos amigos, temos amigos, somos amigos, somos especiais, sabemos que algures também temos um altar sem estátuas, nem velas, nem cânticos, nem culto. Estamos lá, simplesmente.
E faz–nos bem sermos assim, termos a oportunidade de sermos assim, de vez em quando e sempre e para sempre enquanto durar. E ai de quem não for assim. Passa a ser chamado de... amigo. E fica só.

(Foto tirada em Leeds em 2006. Não sei quem são.)
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publicado por Paulo Ferreira às 14:41 | ligação do post | comentar

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